O que é a literatura médica afinal?

Passe algum tempo conversando com um médico — ou melhor, com um grupo de médicos — que logo você ouve a expressão literatura médica: não consta na literatura, não vi a literatura neste assunto, há literatura sobre isso, etc. Vá a um encontro médico — não importa a especialidade — e você inevitavelmente se depara com algum relato de caso apresentado como: nome da doença (alguma doença rara) e revisão da literatura.

O que é essa literatura? Existe alguma enciclopédia permanente consultada quando se escrevem estes relatos? Se existe um corpus médico, onde ele está? Como se acessa essa literatura, e, mais fundamentalmente, como se julga o valor do que nela consta?

A resposta para a primeira pergunta é, na minha opinião, tanto fascinante quanto — para alguns — desalentadora. A literatura médica é tudo o que se escreveu sobre medicina — em amplo contexto — em toda a História. Milhares de anos de registros. Milhões (bilhões?) de páginas de texto, ilustrações, vídeos, em quase todas as línguas da que são ou já foram faladas no planeta. Em nossa tradição ocidental, costuma-se pensar que a literatura médica começa com Hipócrates de Cós e — um pouco depois — com Galeno. Mas mesmo estes antigos médicos/autores de renome invocam tradições estabelecidas muito, muito tempo antes.

Isto se traduz no fato de que os médicos de hoje — não-intencionalmente, amiúde — participam de um diálogo que se estende pelo tempo, e que corre em direção futura. Eu mesmo, em minha tese de doutorado, tentei voltar o máximo possível no tempo –os primeiros relatos incontroversos da doença que pesquisei (ainda pesquiso) eram do século XVIII.

Na literatura médica habitual — no sentido de apresentar um assunto e discutir consequências de um achado clínico/laboratorial — não se pede tanto. Os periódicos pedem que apenas se citem artigos recentes: com o que se entende por recente variando conforme o periódico, editor, revisor e seus co-autores. A razão prática é brevidade — poucos lerão artigos de 50, 60 páginas, mas se perde o amplo sentido histórico de quase tudo que nós médicos fazemos.

Ou seja, quando você ler “revisão da literatura”, entenda “revisão da literatura dos últimos 10 anos (já vimos que isso varia) conforme minhas preferências e meus vieses”.

Nos próximos posts discutirei como se acessa essa literatura e como (ao menos tentar) julgar sua qualidade.